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Genêro: O fator de risco que ninguém conta na quarentena

Em dezembro de 2019, o mundo se deparou com a crise sanitária causada pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2). A doença surgiu na China, mas logo se alastrou pelo mundo. O vírus se transmite através de gotículas produzidas nas vias respiratórias das pessoas infetadas, tosse e espirro são os gatilhos dessa guerra. Medo, pavor, e novas políticas foram produzidos nestes últimos tempos.

O coronavírus chegou ao brasil em pleno carnaval de 2020, os quatro dias de folia foram trocados por desespero na quarta-feira de cinzas. Enquanto alguns festejavam outros procuravam elaborar novas legislações, além de inovações que visem a segurança sanitária, o alargamento de novas infraestruturas da saúde e saberes biomédicos.

Junto a tragédia anunciada, não tem como esquecer os demais problemas de saúde pública que afligem o Brasil, para o debate trazemos como exemplo a pandemia promovida pelo vírus do machismo, que infecta alguns sujeitos a partir da reiterada construção de gênero, que reverbera padrões sociais binários em nossa cultura. Inicia com torces de violência psicológica e espirros que desqualificam moralmente as mulheres, em alguns casos esta pandemia sequela ou mata as mulheres.

Estima-se que no Brasil a cada uma hora 503 mulheres são vítimas de violência doméstica (DataFolha/FBSP, 2017), ocupando a 5º colocação no ranking mundial de mortes de mulheres, que tem como principais agressores marido, ex-marido, companheiro, ex-companheiro, namorado ou ex-namorado, o palco principal desta tragédia é a casa.

Casa, portanto, para muitas mulheres não é sinônimo de proteção, mas de violência. No entanto, em razão da pandemia promovida pelo COVID-19, o Brasil encontra-se em isolamento social, a população está em quarentena, presas em suas casas, tornam-se presas dos seus conhecidos.  Neste momento, o lar se constitui enquanto paradoxo de existência para algumas, se na rua pode morrer de corona, em casa morre por existir. Deste modo, partirmos da seguinte pergunta: qual o corpo legível a cuidados do Estado durante a pandemia do COVID-19?

Estamos de frente a uma transformação da violência de gênero, Rita Segato ainda em 2012 anunciou que a humanidade testemunha um momento de tenebrosas e cruéis inovações na forma de vitimar os corpos femininos e feminizados, uma crueldade que se difunde e se expande sem contenção, e que não se distância de dentro das casas, do matrimonio, ao contrário, se aproximam.  A “obrigação, por ser esposa dele” “a falta de trabalho, o provedor não provendo”, cria uma moralidade, que reduz a objeto o corpo das mulheres e ao mesmo tempo inocula a noção de pecado nefasto, crime hediondo e todos os seus correlatos (SEGATO, 2012).

A exemplo desta moralidade perpetuada, o Presidente da República Jair Messias Bolsonaro em alguns de seus discursos elabora uma análise pessoal que busca explicar o porquê da violência contra mulher aumentar em tempos de isolamento social “tem mulher apanhando em casa. Por que isso? Em casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão. Como é que acaba com isso? Tem que trabalhar, meu Deus do céu. É crime trabalhar?”.

Para o chefe de Estado que no passado declarou que determinada mulher não merecia ser estuprada pois era feia, hoje reitera que outras merecem apanhar por falta de comida em casa. A afirmação não só traduz um desrespeito a vida das mulheres, mas também uma despreocupação do Estado com sua dignidade, em virtude a privilegiar uma economia equilibrada. A ética protestante e o espírito do capitalismo reverberam o discurso do presidente, que vincula a opressão contra as mulheres dia após dia em nome da exploração de uma classe sobre a outra.

A partir da quarentena podemos pensar como se opera a economia moral nas cenas de cuidado em relação à vítima de violência doméstica. A economia moral, segundo Didier Fassin (2014), diz respeito às dimensões acionadas nos processos de valoração e hierarquização da noção de cidadania que conformam os tratamentos direcionados às vidas.

Deste modo, é importante assentar o termo “necrobiopoder” proposto por Berenice Bento (2019), em alusão ao termo conceito de biopoder de “Michael Foucault” e “necropoder”  de Achille Mbembe, uma vez que é a partir desses corpo discursivo (posicionamentos do presidente e demais parlamentares) que se pode ver o necropoder e o biopoder atuando para operacionalizar a leitura dos corpos que saem da relação de subalternidade para um status de igualdade legal. O Estado, portanto, aparece como agente fundamental que distribui de forma não igualitária o reconhecimento de humanidade as mulheres (BENTO, 2019).

Ao contrário de um vírus incontrolável, como é o caso do COVID-19 a violência contra mulher é construída a partir das práticas culturais, socialmente reiteradas. Essa educação dos corpos aos gêneros hegemônicos (homem/mulher) objetiva organizar os sujeitos para a vida edificada a partir do sistema de ideias da complementaridade dos sexos.

A quarentena pode ser compreendida enquanto fator de risco, que causa “confusões” nos “papéis” provocando, direta e imediatamente, “perturbações” e possíveis violência uma vez que estreita as relações de poder, e reitera um terrorismo contínuo. Existindo, assim, uma assimetria a cada enunciado que incentiva ou inibe comportamentos, insulto ou divisão do trabalho doméstico, a cada unha desfeita e cabelos emaranhados, afinal “imagina a mulher sem fazer sobrancelha, cabelo, unha, não tem marido nesse mundo que vai aguentar” além disso, “se a pessoa quisesse matar a mulher e os filhos, ele vai e bate na igreja, está fechada. Daí ele fala: ‘É um aviso de Deus para eu voltar lá e matar”, a fala do vereador Wellington de Oliveira (PSDB-MS) ratifica a compreensão do presidente Jair Bolsonaro acerca da suposição do que é ser uma mulher.

Deste modo se as ações não conseguem corresponder às expectativas estruturadas a partir de suposições, abre-se uma possibilidade para se desestabilizar as normas de gênero, que geralmente utilizam da violência física ou/e simbólica para manter essas práticas às margens do considerado humanamente normal, assim percebe-se a crescente e perene produção de violência de gênero, sobretudo nas relações entre homens e mulheres. No brasil, foi percebido que houve um aumento de 9% das denúncias de violência doméstica contra mulher recebidas pelo Ligue 180, segundo dados do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.

 José Carlos dos Anjos (2017), em um dos seus textos fala que vivemos em guerra, uma guerra racista, e vivemos! Mas vou mais além, vivemos em uma guerra também entre os gêneros. Aqui a violência e a morte de tão cotidiana, tornar-se doméstica (EFREM FILHO, 2011). O Estado de exceção não é mais exceção, ele refunda a forma que o Estado opera, é o seu próprio modus operandi (DAS & POOLE, 2008; AGAMBEN 2002). O estado brasileiro carrega consigo o pressuposto que a expressão máxima da soberania reside em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer, deste modo, pedimos: nos deixe viver! Nossas vidas importam, nossas vidas são enlutáveis!

Maynara Costa de Oliveira Silva

Doutoranda em Ciências Sociais (UFMA) e Professora do Centro Universitário Estácio São Luís