No Maranhão, projetos de conservação são prejudicados pela Funai e 82 organizações socioambientais, indígenas e indigenistas repudiam atitude
Projetos de sete organizações indígenas e indigenistas aprovados para receber apoio do Fundo Amazônia/BNDES foram cancelados por falta de anuência da Fundação Nacional do Índio (Funai). As organizações aguardam há dez meses o documento que é exigência do financiador e computam, neste tempo, 211 trâmites burocráticos entre diversas áreas da Funai, com incontáveis idas e vindas na Diretoria de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável (DPDS). Os projetos, no valor total de R$ 1,5 milhão, foram selecionados pelo Fundo para Promoção de Paisagens Produtivas Ecossociais (PPP-ECOS), gerido pelo Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN).
É a primeira vez que o Fundo PPP-ECOS cancela projetos em razão da não obtenção de um documento expedido por órgão público. Em atividade no Brasil desde 1994, o PPP-ECOS já lançou 34 editais e contratou mais de 600 projetos em seus 28 anos de existência, com recursos de diferentes financiadores. Com o cancelamento inédito, oito povos de 9 terras indígenas, que representam mais de 800 famílias, deixarão de ser beneficiados diretamente. Estão prejudicados os povos Xavante (TI Pimentel Barbosa e TI Marãiwatsédé); Kuikuro (TI Parque Indígena do Xingu); Zoró (TI Zoró); Krikati (TI Krikati); Ka´apor (TI Alto Turiaçu); Gavião (TI Gavião); Apinajé (TI Apinajé) e Krahô (TI Kraolândia).
Nota contra os desmandos da Funai
82 organizações socioambientais, indígenas e indigenistas assinam essa nota contra os desmandos da Funai, em repúdio ao cancelamento dos projetos do Fundo Amazônia pelo atraso deliberado da Funai em expedir uma anuência.
Estados líderes em violações
Com foco em produção sustentável e conservação da Amazônia e do Cerrado, os projetos seriam executados nos estados do Mato Grosso, Tocantins e Maranhão, três unidades da federação das mais prejudicadas pelo desmatamento e incêndios nos últimos anos. Os territórios indígenas são os responsáveis por manter, em uma região de avanço desenfreado da monocultura, a vegetação nativa conservada. A lista de violências territoriais que os povos destes estados enfrentam é extensa.
De acordo com dados do SAD Cerrado, a maior concentração de áreas desmatadas do bioma, no primeiro semestre de 2022, reside no Maranhão, que acumula 26,4% de todo o desmatamento detectado no Cerrado em 2022. Já Mato Grosso, segundo dados do Mapbiomas, entre 1985 e 2020, foi o estado que mais sofreu com incêndios. O estado também é um dos líderes em mortes de crianças indígenas de 0 a 5. De acordo com o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), foram computadas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) 109 mortes. O Mato Grosso ainda está em segundo lugar no ranking de quantidade de registros de conflitos territoriais. A realidade ambiental destas unidades federativas evidencia a necessidade de projetos que promovam a conservação e fortaleçam as estratégias de gestão territorial e ambiental dos povos indígenas.
Conteúdo dos projetos: conservação ambiental
Com recursos do Fundo Amazônia/BNDES, o Fundo PPP-ECOS já apoiou 88 projetos desde 2013. Em 2019, foi renovado o contrato com o Fundo Amazônia para apoiar, até 2023, a execução de 60 novos projetos de organizações da agricultura familiar, indígenas e indigenistas nos estados do Maranhão, Tocantins e Mato Grosso. Neste grupo, constam os sete projetos impedidos pela falta de acesso ao documento da Funai. O pedido de anuência foi protocolado em 9 de dezembro de 2021 pelo ISPN. Para o ISPN, surpreendeu o fato da Funai procrastinar tanto a emissão de um documento, a ponto de serem cancelados projetos que beneficiam os povos indígenas.
As organizações indígenas e indigenistas apresentaram projetos de conservação e produção sustentável diretamente relacionados à segurança alimentar, envolvendo diversas cadeias produtivas, como da castanha do Brasil, das sementes para restauração, com objetivos de criar alternativas de geração de renda, melhorar a alimentação das famílias, realizar manejo de fogo, conservar os recursos naturais, estruturar e melhorar a gestão de agroindústrias comunitárias, além de oferecer insumos para a cadeia da restauração florestal na região. Todos os projetos tinham lastro na Constituição Federal e dialogavam diretamente com os preceitos da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI).
Para o ISPN, a exigência da anuência da Funai fere a autonomia e reconhecimento à autodeterminação dos povos garantidos na Constituição Federal de 1988. “Entendemos que a articulação com a política indigenista executada pela Funai sempre será de grande importância para a execução dos projetos indígenas, mas o documento de anuência se mostrou equivocado, principalmente por desconsiderar que a Constituição de 1988 superou a tutela do Estado brasileiro aos Povos Indígenas”, afirma Rodrigo Noleto, coordenador do Programa Amazônia do ISPN.
“Com um governo explicitamente anti-indigena, como o que temos agora, este tipo de recurso, que deveria ser de fácil acesso, acabou refém de uma operação deliberada da burocracia estatal que objetiva ao final, não concedê-lo. Em virtude dessa regra, os povos indígenas são o único segmento prejudicado, deixando-os à margem do processo”, completa.
Sobre o Fundo PPP-ECOS
O Fundo para Promoção de Paisagens Produtivas Ecossociais é a principal estratégia adotada pelo ISPN, baseada no apoio aos povos, comunidades tradicionais, agricultores familiares e suas organizações. Por meio dele, o ISPN capta e destina recursos a projetos de organizações comunitárias que atuam pela conservação ambiental por meio do uso sustentável dos recursos naturais, gerando benefícios econômicos e sociais. Hoje, a carteira de financiadores do PPP-ECOS conta com o Fundo Mundial para o Meio Ambiente (GEF), a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), Agência Norueguesa de Cooperação para o Desenvolvimento (NORAD), Fundo Amazônia/BNDES, União Europeia e Ministério do Meio Ambiente da Alemanha (BMU).
Sobre o ISPN
O ISPN é uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos ou econômicos com sede em Brasília, que há 32 anos atua pelo desenvolvimento com equidade social e equilíbrio ambiental, apoiando povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares no desenvolvimento de atividades sustentáveis e de estratégias de adaptação às mudanças do clima.