Equipe da Sedihpop visita comunidade quilombola de Guarimã, área de conflito em São Benedito do Rio Preto
No último sábado (6), o secretário de Estado de Direitos Humanos e Participação Popular, Chico Gonçalves, junto com a Coordenação de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade (CPV/Sedihpop), e o padre Francisco das Chagas, coordenador do Programa de Assessoria Rural da Diocese de Brejo, na comunidade de Guarimã, em São Benedito do Rio Preto, para ouvir o depoimento dos moradores sobre a violência que eles vêm sofrendo.
Pela Comissão e pelo Programa, participaram, ainda, a advogada Daniela Reis, e a educadora social Luznarina Pacheco, respectivamente. Também compõem o Programa da Diocese: a educadora social Franciane Nunes e o advogado Diogo Cabral.
Ao chegar, a equipe da Sedihpop se apresentou e foi recebida com muita expectativa.
Dona Raimunda Alves de Lima, de 68 anos, uma das matriarcas, foi a primeira a contar sobre sua história de vida, sobre o território e a situação atual de Guarimã. Ela nasceu no povoado, seu pai também, e o avô chegou no século XIX. Recordou o engenho, o alambique e a casa de farinha, esta última, ainda ativa. O sentimento de pertencimento, o medo de permanecer em suas casas e a vontade de resistir, eram recorrentes nos depoimentos.
“Eu sempre plantei, então eu vou continuar fazendo meu arroz e minha farinha, porque ninguém vai me sustentar”, disse Maria dos Santos Lopes, conhecida como dona ‘Peba’.
Outra moradora relatou o medo presente no dia a dia. “A gente está aqui reunido, eles estão por aí ouvindo, os matos criaram ouvido, é muita aflição no nosso coração. A preocupação dele é que eu fico em casa e a minha é que ele vai para roça”, completou dona Maria Rosilene, conhecida como dona Rosa, se referindo à rotina com o marido.
Valter Alves Lopes, que é pai de quatro filhos e nasceu em 1964, explicou que a área que hoje ocupa pertencia ao avô de seu pai, Joaquim Lopes da Fonseca. Contou ainda sobre as perdas: porcos e galinhas, que da noite para o dia apareceram mortos.
Já Maelson da Silva Bezerra contou que a casa foi incendiada, o que ocorreu depois da negativa para retirada de arame do terreno. “Eu durmo a 40 km daqui, ninguém sabe onde, tenho que andar me escondendo”, relatou, pedindo justiça para Guarimã, e que a enxerguem como solução, não como problema social e histórico.
Como unanimidade, os moradores fizeram os seguintes pedidos: o primeiro, para registrar Boletim de Ocorrência (B.O.) na Delegacia de Conflito Agrário em São Luís, distante cerca de 238 km do povoado, ou a designação de outro delegado que não seja da região para atendê-los, uma vez que encontram dificuldade no acesso a esse direito; o segundo – promessa do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) – a realização de Estudo Antropológico para Titularização Quilombola de mais 22 comunidades que podem ser beneficiadas, por sofrerem os mesmos problemas.
O padre Francisco das Chagas acrescentou que, nas últimas semanas, um carro da Equatorial Energia foi visto colocando postes de energia na área de plantação de soja, sendo que o acesso à energia elétrica é uma demanda antiga da comunidade de Guarimã, mas que nunca foi atendida, mesmo estando na mesma região e tendo solicitado há mais tempo. Por conta disso e do conflito na região, o padre pediu que o serviço seja suspenso.
Ao final da visita, para sanar algumas dúvidas, a advogada da Coordenação de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade (CPV/Sedihpop), Daniela Reis, fez uma breve retrospectiva do processo. Em seguida, o secretário da Sedihpop, Chico Gonçalves, reforçou as palavras da advogada sobre a compreensão dos papéis de cada instância de poder para resolução do conflito.
“Denúncia e mobilização social são essenciais para enfrentar essa disputa jurídica com o protagonismo popular e, nesse sentido, o Estado se compromete com a realização do Estudo Antropológico para sustentar essa defesa na Justiça”, afirmou o secretário e agradeceu, ainda, o apoio da Diocese de Brejo no assessoramento da comunidade.
Com o término dos depoimentos, a equipe dobrou a barra das calças e trocou os sapatos por chinelos, era hora de percorrer o povoado, junto com os moradores. Por entre alagados e lamaçais, era possível ver pés de juçara e babaçu. De casa em casa, até a mais antiga, o modo de vida da comunidade. Nos quintais, manga, laranja, murici, árvores ancestrais, prova da re-existência da comunidade, testemunhas de uma terra que tudo dá.
Confira a íntegra do depoimento de Dona Raimunda
“Eu me chamo Raimunda Alves Lima, nascida e criada neste lugar, eu tô aqui para saber qual a nossa situação nesse lugar, porque nascemos e se ‘criamo’ aqui e, aqui que casei, criei família, e hoje nós estamos aqui com história de invasor. Nós não somos invasores, invasor é quem tá chegando e tá querendo nos tirar daqui pra fora. Então, eu tô aqui para saber qual é o nosso direito, o direito que eu tenho, que meus netos têm, os meus sobrinhos, que nasceram e se criaram aqui. Neste lugar eu conheci duas famílias, a família do meu pai e a família da minha mãe, que moravam uma de cada lado[…] Aqui eu conheci, casa de forno, casa de engenho, caso de ‘lambique’, acabou o engenho, acabou o ‘lambique’, mas a casa de forno existe, onde a gente trabalha. Aqui a gente vive, dessa juçara, do buriti, da manga, goiaba, aqui tudo tem nesse lugar, eu tô aqui para saber, qual é o nosso direito como filho dessa terra[…] Agora em dezembro, nós tivemos um encontro com umas pessoas que vieram de São Luís, baixou um avião bem ali, coisa que eu nunca pensei que ia ver na vida, que eu ia ver um avião sentado nessa terra aqui que nós estamos. Então veio o delegado agrário, veio outras pessoas, que colheram a água e a lama e levaram, prometendo que voltavam, e estamos aqui, até esse momento, esperando essa promessa. Porque nós somos filhos da promessa, então quem veio de fora, não sei da onde ele veio, porque aqui eles dizem que tem casa de fazenda, e eu nunca vi casa de fazenda aqui, o que eu vi, é o que tô lhe dizendo, engenho, ‘lambique’ e casa de farinha[…] Então de 7 anos pra cá, estamos sendo perseguidos, e agora, eu lhe digo que tenho medo. Eu tenho uma casa aqui e uma casa na cidade, porque eu tinha muito filho que precisava estudar e aqui não tinha como estudar, eu tive que botar lá, porque eu não tinha como sustentar esses filhos. Então eles juntos, ‘eu levasse’ um quilo de arroz, um quilo de farinha, eles estavam junto. Então por isso eu tenho lá. Por isso eu lhe digo, eu tenho medo de viver aqui, se eu tiver aqui, e meus filhos subirem para a cidade, enquanto eu não ver eles chegarem meu coração fica pulsando, se eu tiver lá, e meus filhos vierem para cá, enquanto eles não chegam lá, eu também não me sossego. E, a gente vive perseguido, a gente não persegue ninguém, mas vivemos perseguidos. Então, quero saber se nós temos direito ou como é que vai ser, porque eu quero viver o resto da minha vida, aqui, com meus filhos. Porque eu sei que o novo morre, mas na minha idade, eu só quero viver uma vida tranquila, como era antes, antes aqui não tinha essa coisa. Hoje eu lhe digo que eu não vou caçar um coco só, porque tenho medo, não gosto de ficar em casa só, porque tenho medo, eu tenho medo, não aguento mais correr, tenho problema nas pernas, a vista quase não enxergo mais, tô aqui só vejo o vulto, hoje tô com um problema aqui no dedo, mas eu quero que vocês me digam, o que vão fazer por nós[…] Porque lá onde eu fico na minha casa, se o senhor olhar dois pés de manga que tem lá, não tem como dizer que tá há 3 anos só aqui. Porque o meu pai morreu numa casa, com 80 anos, e eu perguntei pra ele, meu pai me diga uma coisa: – quando você se entendeu, esses pés de manga existiam ou meu avô plantou? Ele disse que quando se entendeu, já foi comendo manga, desses pés de manga. Eu não posso mais trabalhar, mas meus filhos podem[…] Estou com 68 anos.”
“Então, a senhora é a mangueira daqui”, concluiu o secretário de Estado, Chico Gonçalves.
Entenda o processo
O conflito possessório era discutido no âmbito de uma Ação de Reintegração de Posse de 2014. Uma decisão do Juiz Guilherme Valente, em 2019, manteve parte da área ocupada para plantação de soja e extração de madeira com seguranças armados no empreendimento, liderado por Inês Fatima Fronchetti, requerente do terreno. Em inspeção, o juiz alegou ainda inexistirem elementos culturais inerentes às comunidades quilombolas.
Importante salientar que cabe à Fundação Cultural Palmares a competência pela emissão de certidão às comunidades quilombolas, e decorre do direito à autodefinição, as comunidades que assim se declaram.
Em 25 de novembro do ano passado, o processo foi enviado para a Justiça Federal, uma vez que há considerações no sentido de deslegitimar a autodeclaração quilombola, bem como a imputação de diversos crimes à comunidade.