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Ação social do Judiciário garante registro civil para lavrador de 71 anos

Foram cerca de 20 anos trabalhando duro no plantio e colheita de milho e soja em uma fazenda. Sempre muito ocupado e com tarefas a cumprir, seu Agnel tinha contato apenas com colegas de lavoura e, algumas vezes, com patrões. Encerrada a jornada diária, ele se recolhia em seu canto, com seu rádio de pilha, onde se tornava invisível para toda sociedade. Morador da cidade de Timon (428km da capital São Luís), ele não tinha o registro civil de nascimento, problema que ainda afeta uma parcela significativa da população brasileira.

Essa realidade mudou na última sexta-feira (11/4), quando Agnel da Silva Oliveira recebeu sua certidão, durante a realização do projeto Registro Cidadão, da Corregedoria Geral do Foro Extrajudicial do Maranhão (COGEX), que fez parte do mutirão social promovido no município pelo Comitê PopRuaJud do Tribunal de Justiça, voltado para atender pessoas em situação de rua e de vulnerabilidade social. Além de Timon, a mobilização também chegou às cidades de Codó e Caxias, na Região dos Cocais.

O sobrenome “da Silva Oliveira” veio dos pais, que seu Agnel não viu falecer, porque estava distante da família. O reencontro com o único irmão, Francisco Oliveira, aconteceu vinte anos após o seu desaparecimento, quando ele regressou a Timon, sua cidade natal, para tratamento de saúde. Um amigo informou a Francisco que viu um homem muito parecido com seu irmão em busca de atendimento no hospital. Ao chegar ao local, a informação se confirmou, era o seu Agnel.

Sobre o tempo de afastamento da família, Agnel contou que saiu para trabalhar em uma chácara e que, de lá, aceitou um convite para serviço em uma fazenda, lá permanecendo por duas décadas. Sem documentos, não teve acesso à Carteira de Trabalho e a difícil rotina na lavoura somente era quebrada pela noite, na companhia do seu rádio de pilha ou da televisão, que abria uma janela para um mundo no qual ele era invisível. “Era muito trabalho e não tinha para onde ir. Era só trabalhar e descansar”, afirmou.

No hospital, Francisco foi orientado a levar o irmão para fazer o registro, que veio após uma decisão judicial, proferida pela juíza Susi Ponte, titular da 2ª Vara Cível de Timon, que tem competência para registros públicos. Hoje, com 71 anos de idade, depois de muito serviço braçal, Agnel Oliveira quer virar a página em branco da invisibilidade e começar a escrever uma nova história, já pensando na aposentadoria. Ele não quer mais se afastar da família e vai buscar apoio para obter outros documentos, como identidade, CPF e cartão do SUS. “Agora eu tô bem e tô feliz, querendo só sossegar no meu canto. Vou tirar outros documentos e tentar aposentar”, disse.

De acordo com Francisco Oliveira, os seus pais nunca levaram o irmão para ser registrado. Sem documento, seu Agnel frequentou apenas a escola da vida, não tendo oportunidade de acesso a uma educação formal. Também não pode acessar serviços de saúde para simples consulta, pois nunca teve cadastro no Sistema Único de Saúde (SUS). Francisco contou que o reencontro no hospital foi marcado pela dificuldade de receber um atendimento básico. “Como ele não tem a carteirinha do SUS, ele recebeu somente um atendimento de emergência e fui orientado a tirar o registro dele para que pudesse ter um tratamento melhor”, lembrou.

Em sua sentença, a juíza ressaltou o amparo legal para o registro tardio de nascimento (art. 50, § 4º, da Lei n.º 6.015/73) e destacou que sem o registro de nascimento “uma pessoa, para todos os efeitos legais, não possui nome, sobrenome e nacionalidade, portanto não existe para o Estado, permanecendo, por isso, impossibilitada de realizar atos simples da vida civil”. Com base nos depoimentos do irmão, que afirmou categoricamente a data de 10 de jeneiro de 1954 como o dia que o seu Agnel Oliveira nasceu, a magistrada considerou essa informação para estabelecer o nascimento, determinando a lavratura do registro na sentença.

COMBATE AO SUB-REGISTRO

Embora tenha tido um final feliz, a história de seu Agnel Oliveira escancara uma triste faceta da sociedade brasileira, onde alguns vivem na total exclusão. São muitos os “Zés”, “Toinhos”, “Marias” que seguem apenas com apelidos, sem nome e sobrenome, sem o registro civil de nascimento, privados de direitos básicos e do exercício da cidadania enquanto bem essencial em um Estado democrático. Cidadãs e cidadãos sem documentos e, por consequência, sem acesso a políticas públicas e a oportunidades de uma vida digna, com estudo e trabalho formal, por exemplo.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano de 2022, dos cerca de 2,5 milhões de brasileiros nascidos vivos, cerca de 33 mil não foram registrados no prazo legal, que pode chegar a 90 dias. Esse dado é um recorte temporal e não reflete diretamente que seria essa a quantidade de pessoas que chegam à vida adulta sem documento. Por outro lado, revela o desafio que o país precisa enfrentar para assegurar cidadania a todas e todos desde o primeiro dia de vida.

No Maranhão, o Poder Judiciário, por meio da COGEX e apoio da rede de órgãos parceiros, tem realizado um grande esforço para que o problema enfrentado por seu Agnel Oliveira não se repita. Para isso, atua no sentido fomentar a política de acesso à documentação básica, por meio de ações como o Registro Cidadão, a Semana Registre-se!, o Município SubZero, o projeto Cegonhas e a política de implantação de unidades interligadas, serviço este que já chegou a 127 municípios e que garante o registro de nascimento ainda na maternidade. Esta iniciativa, inclusive, tem possibilitado o combate ao sub-registro civil, com a redução do índice de cerca de 15% em 2015, para pouco mais de 3% em 2022.

REGISTRO CIDADÃO NOS COCAIS

Na última semana, o Núcleo de Registro Civil da Corregedoria Geral do Foro Extrajudicial atuou em parceria com o Comitê PopRuaJud do TJMA, levando acesso à documentação básica por meio do projeto Registro Cidadão. Durante três dias, percorreu mais de 500km para levar cidadania a pessoas em situação de rua ou de vulnerabilidade, que estavam impossibilitadas de exercer seus direitos e acessar serviços, pelo fato de não serem registradas ou não terem seus documentos atualizados.

Com apoio dos cartórios de registro civil de nascimento em todas as etapas, na quarta-feira (9/4) foram atendidas 52 pessoas na cidade de Codó. Na quinta-feira (10/4), foi a vez do município de Caxias, que regularizou a vida documental de outras 87 pessoas, que puderam acessar outros serviços e obter novos documentos. Já na cidade de Timon, além do senhor Agnel Oliviera, outras 52 pessoas saíram do mutirão com a certidão em mãos.

Os trabalhos da COGEX na Região dos Cocais contou diretamente com o apoio das registradoras Silvaneide Araújo (2º Ofício de Codó), Lívia Ayub (Cartório do 3º Ofício de Caxias) e Elcia Lima (2º Ofício de Timon). Além das equipes do TJMA, também atuaram equipes das prefeituras e órgãos parceiros na oferta de serviços como cadastro social, emissão de documentos, higiene pessoal, saúde e orientação jurídica.