Histórias de negros que lutaram pela liberdade perante a Justiça maranhense

“É declarada extincta desde a data d’esta lei a escravidão no Brasil”. O artigo primeiro da Lei nº. 3353 de 13 de maio de 1888 – a Lei Áurea – dispositivo legal de apenas dois parágrafos, em documento assinado pela princesa Isabel, marcou o fim de 300 anos de escravidão no Brasil (1550 a 1888). Passaram-se 132 anos da libertação, contudo, ainda vivenciam-se as consequências da escravidão até os dias de hoje.

Durante séculos, permeou-se no imaginário popular, a ideia de um escravo submisso e inerte diante de seus opressores e das condições desumanas que viviam. Para desmistificar a ideia desse negro dominado e sem conhecimento, o Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA), apresenta alguns personagens que viveram à época do Brasil Império, no século XIX, que peticionaram perante a Justiça maranhense o direito à liberdade.

É no acervo histórico do Arquivo do TJMA – permeado de personagens e histórias de vida que datam séculos – que resgatamos as petições do “pardo” Camilo Antonio, da “preta” Maria dos Anjos, do escravo Marcolino e da escrava Filomena. Homens e mulheres impelidos pelo desejo latente da tão sonhada liberdade, que buscaram por meios jurídicos a garantia dos seus direitos.

A seleção foi publicada na monografia “Cidadania, Escravidão e Justiça na Província do Maranhão: considerações sobre o direito de petição e o acesso à justiça por escravos e libertos (1824 – 1888)”, de Christofferson Melo, como fruto do dia a dia do trabalho desenvolvido na Divisão de Acervo Judicial e Histórico do TJMA. A unidade institucional está sob a direção da Coordenadoria de Biblioteca e Arquivo do TJMA, coordenada por Cintia Valéria Andrade.

PARDO CAMILO ANTONIO

O pardo Camilo Antonio, ex-escravo do padre José Pinto Teixeira, peticionou no dia 31 de julho de 1841, junto à Primeira Vara Cível da Cidade do Maranhão, antiga denominação de São Luís. No pedido, relatava que tinha obtido liberdade desde 1836, da qual gozava e tinha posse, mas que Dona Maria do Carmo Carolina Teixeira – herdeira do dito padre – se intitulava senhora e possuidora dele, motivo pelo qual mandou que ele fosse capturado.

Relatou ainda que temia por sua segurança e que fosse vendido para fora da Província, sem que sobrasse tempo para mostrar “o seu direito”. Desta forma, Camilo Antonio ajuizou uma ação de depósito para liberdade. O objetivo de Camilo Antonio era evitar que fosse reescravizado. Para tal, utilizou do aparato estatal e do direito de requerimento, previsto no artigo 179 da Constituição Política do Império do Brasil.

Assim, teve seu pedido atendido pelo magistrado, e o depósito foi realizado três dias depois. Conforme as regras processuais de então, todo escravo que tivesse seu depósito deferido, para fins de liberdade, teria obrigatoriamente que propor a respectiva ação em prazo determinado.

Segundo a análise da pesquisa acadêmica, o caso possui algumas peculiaridades. “De início, o mesmo Camillo Antonio atravessou uma petição intermediária na qual, informando a realização do depósito, solicita do juízo as providências necessárias, pois não teria as condições de propor a ação de liberdade, se declarando “indigente”. A situação, em nossa análise, se mostra como um embrião do instituto jurídico da assistência judiciária gratuita”, afirma Christofferson Melo, bacharel em Direito e historiador.

Em sua defesa, a ré alegou que a “suposta” liberdade do escravo teria se dado por via de um negócio jurídico entre o Padre José Pinto Teixeira e o preto forro Jacintho Antonio da Conceição, no valor de 800 mil réis. Entretanto, como o padre não teria recebido o valor, o contrato seria nulo e, com ele, a liberdade de Camillo Antonio não teria se consumado. Alegou ainda que Camillo Antonio não teve passada a seu favor a carta de liberdade, o que, portanto, confirmaria o estatuto jurídico do autor como escravo.

O juízo de base, entretanto, não levou em consideração nenhum dos argumentos, tanto da parte autora com da ré. E, trazendo à guisa uma prática processual da conciliação, estabelecida por um decreto imperial, decretou em sentença que: “Nenhum processo pode começar ou ter princípio sem que primeiro se tenham intentado os meios de conciliação, como é expresso em Direito, Decreto de 17 de novembro de 1824. Do exame destes autos se vê que esta ação, ou processo começou, e continuou sem ser esgotado o meio conciliatório, logo é nulo, e como tal não pode subsistir, e por isso, revendo dos autos [ilegível] julgo, e declaro nulo todo este processo, e condeno nas custas a quem requereu.”

O magistrado decreta assim, a nulidade do processo, por considerar que não foi observado o requisito legal para o seu ajuizamento, produzindo com a sentença coisa julgada formal.

PRETA MARIA DOS ANJOS

A preta Maria dos Anjos também temia ser reescravizada. Para tal, ajuizou petição de depósito para liberdade, que foi distribuído para o Juízo Municipal da Primeira Vara Cível da Comarca de São Luís, no ano de 1865.

Maria dos Anjos foi escrava de Dona Maria Francisca Alves Branco, moradora da Vila de Guimarães. Trabalhava como dama de companhia da dita senhora, e obteve sua liberdade por carta de alforria passada antes da morte desta.

Entretanto, conforme nos relata Maria dos Anjos, o marido de sua antiga senhora, Euphrasio Leandro d’Abreu, com quem esta não convivia maritalmente, utilizou-se de estratagemas e, após apossar-se da carta de liberdade original, pôs-se a tentar no juízo do Termo de Guimarães que lhe fosse concedida sentença para decretar Maria dos Anjos novamente escrava.

A preta, que já vivia como livre e gozava de todos os direitos e atos da vida civil como mulher livre, num ato de desespero, fugiu para São Luís, onde obteve a ajuda necessária para intentar a respectiva ação.

Assim, utilizou-se do direito de petição para protestar seu direito e, de forma bastante contundente e detalhista, na petição inicial, contou a sua história, nos autos do processo de Depósito para Liberdade, datado de 1865, documento salvaguardado no acervo do Arquivo do TJMA.

ESCRAVO MARCOLINO

Na área penal, a pesquisa apresenta o exemplo do caso do escravo Marcolino, julgado pelo crime de roubo na Comarca de Alcântara, em processo de apelação do ano de 1868.“Inúmeros são os exemplos de libertos ou escravos que buscam o judiciário como o objetivo de exercer os seus direitos. São ações que envolvem desde pequenos delitos a crimes graves, como os contra a vida”, explica o historiador.

Marcolino era escravo de D. Anna Candida Alves Serrão, e havia sido denunciado pela Justiça Pública por ter cometido o crime de roubo, tipificado no artigo 269 do Código Criminal do Império, in verbis: “Art. 269. Roubar, isto é, furtar, fazendo violencia á pessoa, ou ás cousas. Penas – galés por um a oito annos”.

Com decisão contrária, exerceu plenamente seu direito de recorrer, nos termos do artigo 301 do citado texto legal: “Art. 301. Das sentenças proferidas pelo Jury não haverá outro recurso senão o de appellação, para a Relação do Districto, quando não tiverem sido guardadas as formulas substanciaes do processo, ou quando o Juiz de Direito se não conformar com a decisão dos Juizes de Facto, ou não impuzer a pena declarada na Lei.”

“Os escravos eram, à luz do ordenamento penal, sujeitos de direito em seu sentido amplo. A lei permitia que, a bem do seu direito, pudesse nomear defensor e utilizar-se de todos os meios de defesa possíveis”, esclarece Christofferson Melo.

Assim, Marcolino recorreu ao Tribunal da Relação. No seu voto, o desembargador João Baptista Gonçalves Campos acabou por verificar erros materiais na sentença de primeiro grau, decidindo pelo conhecimento e provimento do recurso, com a consequente remessa dos autos para novo julgamento no juízo de base.

ESCRAVA FILOMENA

Em outro exemplo, a escrava Filomena respondeu a um sumário de culpa e foi levada a Júri por ter cometido o crime de ferimentos e ofensas físicas, consoante o disposto do artigo 201 do Código Criminal do Império, transcrito abaixo: “Art. 201. Ferir ou cortar qualquer parte do corpo humano, ou fazer qualquer outra offensa physica, com que se cause dôr ao offendido. Penas – de prisão por um mez a um anno, e multa correspondente á metade do tempo.”

No caso, Filomena pôde utilizar-se do seu direito de requerimento para peticionar, a bem de seu direito e melhor estratégia de defesa, em vários momentos, sendo-lhe permitido atravessar petições, através de um curador, inclusive indicando testemunhas de defesa.

“Ou seja, em todos os casos apresentados, pudemos observar que negros, fossem libertos ou escravos, possuíam uma gama de direitos positivados e garantidos no ordenamento jurídico”, conclui Christofferson Melo.

São inúmeros os casos que demonstram um movimento de resistência de um grupo de negros, escravos e ex-escravos na luta pela liberdade. Eram pessoas que lutavam pela liberdade própria, pela liberdade dos filhos e pela manutenção e reconhecimento da liberdade. Direito esse, fundamental do ser humano.